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Entrevista a Catarina Câmara - Corpoemcadeia

O SOCIALiS entrou em contacto com a bailarina, professora de dança e coordenadora do projeto Corpoemcadeia, Catarina Câmara, para nos dar a conhecer este projeto que une a dança contemporânea e um grupo de reclusos do Estabelecimento Prisional (EP) do Linhó.



SOCIALiS: O que é o projeto do CorpoemCadeia? Como surgiu?


CATARINA CÂMARA: O Corpoemcadeia é um projeto PARTIS (Práticas Artísticas para a Inclusão Social), apoiado pela Fundação Calouste Gulbenkian que promove a intervenção artística e social junto de comunidades em situação ou em risco de exclusão social. A ideia foi levar a dança contemporânea, designadamente, aquilo que é a prática artística da Companhia Olga Roriz (com a qual colaboro há 17 anos como docente e bailarina), suas metodologias criativas e recursos humanos, articuladas com as técnicas de intervenção da Psicoterapia Gestalt, junto de uma população que é invisível aos olhos da sociedade e com acesso praticamente nulo à cultura: a população prisional.


O projeto será implementado em várias fases, durante 3 anos, o que já é um tempo que nos deixa respirar. Estamos desde Abril de 2019 a trabalhar no Estabelecimento Prisional do Linhó (EPL) com um grupo de homens, entre os 21 e 38 anos, que foram condenados em penas iguais ou superiores a 6 anos. Pelo caminho, teremos uma criação artística com assinatura de Olga Roriz, várias apresentações públicas (no EPL e salas de espectáculos) a publicação de um livro e a realização de um documentário sobre o projeto. O que se prevê como mais desafiante será criar condições para que o Corpoemcadeia se possa transformar, replicar e continuar a ligar pessoas.


Há muito tempo que vinha gestando este projeto. Entrelaça as pontas soltas do meu percurso académico e profissional: o Direito, a Dança e a Psicoterapia Gestalt (PG). Depois de uma penitência em Direito, fui resgatar o meu equilíbrio físico e mental, o meu “élan vital” à dança. Mais tarde, senti necessidade de entender o potencial de transformação pessoal e social da prática artística e seus processos criativos, à luz de um repertório mais científico e filosófico. A PG é interessante porque se foca mais nos Comos e nos Para Quês, do que nos Porquês. Recorre a uma abordagem fenomenológica que coloca a consciência num lugar ativo e pragmático, convoca para a mesma “fala”, pensamento, sentimento e ação. Promove um sentido de responsabilidade e “autoria” em relação às nossas vidas. E aqui a responsabilidade, tal como a palavra indica, é a capacidade de responder de forma hábil aos desafios, com criatividade e plasticidade.

De certa forma, a PG poderia ser um modelo teórico para a Arte.


Sempre me senti atraída por aquilo que se move na sombra, na periferia do visível. Gosto de acreditar que ao “mergulharmos” nessa massa subterrânea, podemos provocar uma ondulação que destabiliza a superfície. E aí entra o gesto poético, o punhal do artista. Fratura, desestabiliza, cria novos mapas associativos que baralham as estruturas do Amor e do Poder.


A cadeia é desses grandes “fantasmas” sociais, o elefante na sala que ninguém quer ver. A prisão serve a muito poucos. Basta perceber quem representa a população prisional e qual o seu contexto socio-criminal, para entender que não estamos a dar resposta à problemática social que se esconde por detrás das grades. A cadeia ajuda também a desviar o foco de outros acontecimentos de natureza criminosa, levados a cabo por agentes políticos e económicos. Estamos a falar de decisões de todos os dias e que põem em risco o equilíbrio social e ecológico, decisões, muitas vezes incompatíveis com qualquer sistema de vida.

SOCIALIS: Fazendo uma reflexão sobre o mesmo, o que é que foi cumprido de acordo com as ideias iniciais? O que é que surgiu de novo que não foi programado? Como geriram estas "novidades"?

CC: Tal como ambicionávamos, conseguiu-se criar um espaço estimulante e exigente ao nível da prática artística, onde todos participam com dedicação e entusiasmo. O grupo tem estado a receber formação em dança pela equipa artística e docente da Companhia Olga Roriz (COR). Devido à situação atual (Covid-19), tivemos de suspender as atividades presenciais no Estabelecimento Prisional , mas continuamos em contacto, lançando desafios criativos à distância. Simultaneamente, instituiu-se uma rotina interessante de partilha e reflexão sobre as vivências que emergem durante as sessões ou no dia a dia. Para além dos participantes, temos sempre no campo, um formador artístico e uma terapeuta de Gestalt.

Tem sido surpreendente constatar como o social e o artístico se potenciam quando articulados com imaginação e flexibilidade. Maior pegada artística gera maior pegada social e o inverso também.

Curiosamente (e isto desvela já o preconceito social), os maiores desafios aconteceram no seio da equipa e não com os reclusos. Algumas funções sociais desenhadas inicialmente em sede de candidatura, não se coadunaram com as reais necessidades do projeto. É muito difícil produzir-se um entendimento sério sobre os resultados sociais e artísticos se não houver um entrosamento com a vida do projeto.

Numa primeira fase, precisamos de reforçar a ideia de que o “setting” de trabalho, a linguagem e os códigos eram de natureza artística e não terapêutica.


O tratamento do recluso por “tu” não fragiliza a relação de respeito, da mesma forma que a utilização do “toque” numa aula de dança é algo natural e que deve ser vivido de forma saudável. A prática da dança, e neste caso, a forma como a Companhia Olga Roriz encara os processos de partilha e criação artística, promove a experiência total e espontânea da relação: o humor, o afeto, a colisão, dúvida e impasse, fazem parte desta intimidade participada.

A dança contemporânea possibilita experimentar o corpo, não como uma soma de partes, com rótulos comercias, pornográficos ou religiosos, pronto a ser consumida às fatias. Quando se descobre que o corpo é uma inteligência orgânica e relacional e que todas as partes têm o mesmo valor, ele passa a valer como instrumento poderoso de conhecimento e relação.

Acontece que muitas vezes estamos a projetar inseguranças e preconceitos próprios, amputando a nossa experiência e a do outro. O que protejo na relação com o outro? E o que deixo cair? São duas perguntas-bússola.

Tentar ver o outro tal como ele existe para nós naquele momento e não como imaginamos que ele é ou deveria ser. Será sempre um exercício de boas intenções, mas vale a pena praticá-lo. No caso do Corpoemcadeia, implica deixar do lado de fora a mochila académica e entrar na prisão com espírito de explorador. Estar preparado, sem antecipar.

Quando um corpo é saudável, ele tem a capacidade de se auto-regular. Neste momento, sinto total confiança no atual núcleo duro da equipa. A Magda Bull (gestora/produtora) e a Alexandra Roque (coordenação socia/terapeuta Gestalt) são insubstituíveis companheiras de viagem.

SOCIALiS: Como é trabalhar com este público alvo?

CC: Tenho tido o privilégio de encontrar muitos tipos de paisagens humanas. Para mim é sempre mais fácil e estimulante o contacto com um ser humano em ruínas do que com um ser humano armado de betão. No primeiro é mais uma questão de re-organizar os materiais, criar novos alinhamentos e conexões, não é preciso detonar para re-construir. Há caos e há espaço para o movimento. Estou a generalizar, claro, embora reveja muitos dos rapazes do EPL nessa primeira paisagem.

Há muita desarrumação interior mas sente-se o potencial criativo e transformador desse caos. Há abertura em relação ao que vem de fora e é novo, o desejo de absorver e incluir o outro para se encontrarem a si próprios.

Ás vezes imagino-me a desenvolver um projeto desta natureza com outro tipo de público, advogados e magistrados, por exemplo, e quase adivinho a resistência. Seria muito benéfico para todos se o estado investisse em práticas artísticas para desenvolver competências sociais junto das classes com poder de decisão.

Também se entende que a moldura-tipo do criminoso é uma moldura frágil. Existem sim, aspetos comuns partilhados por pessoas que vivem experiências semelhantes e habitam o mesmo espaço, mas é muito mais aquilo que os diferencia do que o que os aproxima.

Curiosamente, fui encontrar neste grupo de rapazes, uma qualidade de atenção, que é muito próxima à qualidade de presença que se espera de um performer, ator ou bailarino. Talvez isto tenha a ver com a necessidade de estas pessoas estarem permanentemente em estado de vigilância. Muitos dos rapazes tiveram trajetórias de vidas complicadas, com memórias físicas marcantes. Como se costuma dizer: “ tiveram de se fazer à vida”. Há uma agilidade, inventividade, que surpreende e dinamiza. É muito comovente ser testemunha desses movimentos de expansão, a forma corajosa como negoceiam com o medo e com a vergonha.

Não esquecerei o que um dos rapazes partilhou logo nas primeiras sessões: “ Aqui sinto-me livre. Posso praticar a gentiliza”.

Pessoalmente, sinto que precisamos de entender “com pinças” esta ideia de que estamos missão de empoderamento social. O que fazemos é facilitar ligações, conexões. Stella Duffy, que tem realizado um trabalho incrível ao nível da aproximação de pessoas e comunidades em todo o mundo, explica bem esta realidade: “ We all have the power. I t is the system that denies some of us to use it. We already have the ability, it is our society that decrees some abilities are more valuable than others”.

É preciso recuar da posição de superioridade intelectual e social. Estamos tão implicados quanto o outro no que toca a perdas e ganhos por força da marginalizarão e exclusão social.


A questão não é só, “o que posso eu oferecer, o que posso eu outorgar ao outro dos meus domínios de privilégio e saber ?”, mas sim ousar perguntar-me, “o que é que eu perco, quão mais pobre é a minha vida por não participar na vida daquelas pessoas, daquela comunidade?”.

Poderá ser uma boa pista para acabarmos com o isolamento social.



Para mais informações acerca do projeto consultar aqui.


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